Apesar das diferentes correntes filosóficas, sociológicas e médicas que investigaram o fenômeno nos últimos séculos, o suicídio é, indiscutivelmente, e será ainda mais, um problema de saúde pública mundial. Atualmente, mais de 800.000 pessoas se matam todos os anos, o que consiste em um suicídio a cada 40 segundos, tornando o suicídio a segunda causa mundial de morte entre indivíduos de 15-29 anos (1). Seguindo os dados da Organização Mundial da Saúde1, o Brasil ocupa a 132a posição entre os países quando comparamos as taxas de morte por suicídio, com um índice de 6,1 suicídios para cada 100.000 habitantes, número esse que está abaixo da média mundial (10,53/100.000) e das Américas (9,25/100.000). Entretanto, para diversas pessoas que estudam o tema, tal taxa Brasileira é muito abaixo do real, haja vista a má qualidade dos dados epidemiológicos que dispomos em nosso país, assim como no restante dos países subdesenvolvidos (2).
Não é do escopo deste pequeno texto fazer um levantamento bibliográfico, muito menos epidemiológico, do tema em questão. Para os leitores que desejarem se aprofundar mais no tema, sugiro a leitura de artigos especializados, além dos livros “Suicide: an Unnecessary Death” (3) e “The International Handbook of Suicide Prevention” (4) que darão ao leitor uma ampla gama de evidências, conceitos e considerações atuais sobre o tema. Entretanto, acreditamos ser importante ressaltar uma recente revisão sistemática (5) (atualização de Mann (6) 2005) que avaliou todos os estudos mundiais publicados entre 2005 e 2014 relacionados a estratégias de prevenção ao suicídio. Após ampla análise dos dados os autores concluíram que, apesar de poucos artigos disponíveis, já existem evidências relativamente estáveis que as seguintes estratégias podem e devem ser desenvolvidas no tocante à prevenção do suicídio (para os leitores que desejarem abordagens farmacológicas, sugiro consultar o artigo em questão).
Apesar de todas essas abordagens efetivas e cruciais na prevenção do suicídio, há uma que, ao nosso ver, é a pedra fundamental, a base por onde passam todas elas e da qual não conseguiremos fugir um só instante, o que chamarei de autocuidado. Cuidar de si é condição primária para um bom cuidado com o outro. Se não escutarmos nossos próprios limites, dores e intuições, como poderemos estar abertos para escutá-los no outro? O processo empático de acolhimento, que se caracteriza pela compreensão ativa do outro em sua totalidade, não é tarefa fácil, mas é aspiração que todos devemos ter em mente.
Inicialmente, para alcançarmos tal objetivo, talvez valha a pena pensarmos nos motivos que nos levaram à Medicina. Para um jovem, talvez seja mais fácil; para uma pessoa mais experiente, talvez a reflexão tome mais tempo. Será que somos o médico que gostaríamos de nos tornar? Após isso, compare com a pergunta: será que somos a pessoa que gostaríamos de nos tornar? Usualmente, observamos um paralelismo entre essas duas questões. Ou talvez nunca tenhamos parado para pensar nela. Em nossa profissão, o cuidado com o outro, o altruísmo, é inerente a quem a escolheu verdadeiramente. Apesar de essa discussão estar crescendo nos últimos anos, por que falamos tão pouco sobre nosso próprio cuidado? Porque insistimos em falar para nossos alunos, ou ouvir de nossos professores, o quanto somos/ou são mágicos por termos/ter suportado dores maiores que a que ele está enfrentando atualmente: noites sem dormir, horas sem comer, dias longe da família, abusos, ameaças, medos sofridos calados. Porque não falamos o quanto isso também custou à nossa saúde mental? O quanto isso custou à nossa felicidade?
O exercício da Medicina é uma tarefa árdua e desgastante. Uma reconstrução pessoal a respeito do que leva um jovem a escolher tal caminho se faz necessária. Com a graduação e o início da atividade médica subsequente muitas vezes em plantões de pronto-atendimento lotados, ou equipamentos de saúde distantes das condições ideais, cria-se um ambiente propício para a “desumanização” do médico. Lidamos com plantões lotados, falta de recursos, uma população ainda carente de condições de saúde plenas, e com a gravidade e complexidade dos casos atendidos. Também nota-se uma mudança do perfil do médico ao longo das décadas, do tradicional médico de família, que atendia a domicílio e dominava a relação médico-paciente, para o médico do posto de saúde, do hospital e o especialista, que devido à demanda por uma medicina cada vez mais técnica, pode subestimar a importância terapêutica da relação médico-paciente. As consequências dessas mudanças e novos contextos afetam nossa classe em termos de saúde mental e são estudadas e avaliadas de forma extensa na literatura a respeito. Todavia, de tempos em tempos, é necessário um afastamento do tecnicismo envolvido nessa discussão, e uma aproximação da subjetividade do médico, aproximando-se da essência da sua individualidade. Lidamos diariamente com um tipo de sofrimento inerente à nossa prática, carregar o ônus de ser o responsável da dor do outro, o que torna a reflexão a respeito vital, não só para uma boa medicina, como para nossa própria saúde mental
O que estamos tentando dizer é para pensarmos qual a motivação para tudo isso. Havia a necessidade? Se havia, ainda há? Se há, existe alguma forma de amenizar o sofrimento? Existe algum meio de proporcionarmos apoio que não seja de uma forma desesperada como quem estivesse buscando ar ao se afogar no mar revolto? Os tempos são outros. Cuidar de mim é crucial. Cuidar do outro é consequência imediata disso. Se cuidamos de nós, iremos querer que todos façam o mesmo. Se amamos viver (com todos seus obstáculos, dores, sofrimentos, pesares, perdas, etc.), iremos querer que todos sintam o mesmo. Se somos ajudados por alguém em um momento de dificuldade, iremos querer ajudar alguém que também sofre. Em nosso meio, talvez o suicídio seja o resultado da perda de todas essas conexões. Reconecta-las é o desafio dessa geração; e começar por nós mesmos, médicos e demais profissionais de saúde, é inadiável.
Não é do escopo deste pequeno texto fazer um levantamento bibliográfico, muito menos epidemiológico, do tema em questão. Para os leitores que desejarem se aprofundar mais no tema, sugiro a leitura de artigos especializados, além dos livros “Suicide: an Unnecessary Death” (3) e “The International Handbook of Suicide Prevention” (4) que darão ao leitor uma ampla gama de evidências, conceitos e considerações atuais sobre o tema. Entretanto, acreditamos ser importante ressaltar uma recente revisão sistemática (5) (atualização de Mann (6) 2005) que avaliou todos os estudos mundiais publicados entre 2005 e 2014 relacionados a estratégias de prevenção ao suicídio. Após ampla análise dos dados os autores concluíram que, apesar de poucos artigos disponíveis, já existem evidências relativamente estáveis que as seguintes estratégias podem e devem ser desenvolvidas no tocante à prevenção do suicídio (para os leitores que desejarem abordagens farmacológicas, sugiro consultar o artigo em questão).
- Restrição do acesso a meios letais: Para os clínicos que tem ou terão contato com pacientes com comportamentos suicidas é crucial a abordagem deste tópico. Pessoas que referem planejamento ou mesmo ideação suicida devem ter uma abordagem familiar para avaliar possíveis métodos disponíveis que possam facilitar o paciente a cometer suicídio. Mesmo antes da avaliação pelo médico psiquiatra, o clínico deve fazer essa investigação criteriosa, buscando encontrar e orientar a família a retirar do contato com o paciente meios como: excesso de medicamentos, armas, cordas, venenos, pesticidas, etc.
- Restrição ao porte de armas: Apesar de fazer parte do item acima, este item merece uma atenção especial. Há evidências de que a descriminalização do porte de armas para pessoas comuns pode aumentar o número de suicídio por armas de fogo, além de elevar o número absoluto. Alguns países que fizeram o sentido contrário (restrição ao acesso) também encontraram redução no número de suicídios. Estes achados ampliam o debate em termos de políticas públicas a serem discutidas e tomadas, devendo ser considerados pelas autoridades para a definição de seus planos de governo e legislações decorrentes.
- Psicoterapias: Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) e Terapia Comportamental Dialética (TCD).
- Cuidado longitudinal a saúde mental: O cuidado a saúde mental de indivíduos com comportamento suicida é de fundamental importância. Os argumentos antiquados (“pessoa que fala não faz” ou “está apenas querendo chamar a atenção”) já caíram em descrédito há muito tempo, e apenas um profissional empático, bem-intencionado e tecnicamente preparado é capaz de acolher as demandas de um paciente que, muitas vezes, está pedindo sua última chance.
- Treinamentos e Programas de Conscientização: Seja para leigos ou profissionais de saúde, a educação continuada e o oferecimento de treinamento por especialistas na área (aumentando a percepção e o manejo com pacientes suicidas) é uma estratégia eficaz e muitas vezes de baixo custo, tendo alcances regionais.
- Cuidados com a divulgação de notícias: Tomar muito cuidado, principalmente em pequenas comunidades, a forma e a necessidade de se veicular notícias relacionados aos suicídios. Lembrar do “suicídio por contágio” ou “efeito Werther”, fenômeno que se refere ao aumento do número de suicídios após a divulgação/conhecimento de um suicídio cometido. Esse fenômeno, primeiramente notado com os suicídios de jovens na Europa do século XVIII após a publicação da obra de Goethe, Os Sofrimentos do Jovem Werther, ainda carece de estudos que proponham estratégias efetivas para direcionar políticas públicas. Entretanto, “o suicídio por contágio” já é conhecido e estudado há mais de 30 anos, com ênfase no efeito epidemiológico de suicídios de figuras públicas (celebridades ou mesmo políticos) ou obras ficcionais de grande impacto na mídia, com evidências de que a população jovem é mais susceptível a ele. Com a difusão do conhecimento que vivemos, com informações e conteúdos sendo veiculados diariamente por diversos canais de acesso, é imprescindível cautela em abordar o tema do suicídio pela mídia, tanto a especializada quanto a de massa, sendo interessante a consultoria de especialistas da área. Para leitores interessados em uma discussão mais aprofundada do assunto, sugerimos a leitura do artigo de Zimerman (7), que discute os efeitos de uma recente e conhecida obra sobre o suicídio em uma população de jovens.
Apesar de todas essas abordagens efetivas e cruciais na prevenção do suicídio, há uma que, ao nosso ver, é a pedra fundamental, a base por onde passam todas elas e da qual não conseguiremos fugir um só instante, o que chamarei de autocuidado. Cuidar de si é condição primária para um bom cuidado com o outro. Se não escutarmos nossos próprios limites, dores e intuições, como poderemos estar abertos para escutá-los no outro? O processo empático de acolhimento, que se caracteriza pela compreensão ativa do outro em sua totalidade, não é tarefa fácil, mas é aspiração que todos devemos ter em mente.
Inicialmente, para alcançarmos tal objetivo, talvez valha a pena pensarmos nos motivos que nos levaram à Medicina. Para um jovem, talvez seja mais fácil; para uma pessoa mais experiente, talvez a reflexão tome mais tempo. Será que somos o médico que gostaríamos de nos tornar? Após isso, compare com a pergunta: será que somos a pessoa que gostaríamos de nos tornar? Usualmente, observamos um paralelismo entre essas duas questões. Ou talvez nunca tenhamos parado para pensar nela. Em nossa profissão, o cuidado com o outro, o altruísmo, é inerente a quem a escolheu verdadeiramente. Apesar de essa discussão estar crescendo nos últimos anos, por que falamos tão pouco sobre nosso próprio cuidado? Porque insistimos em falar para nossos alunos, ou ouvir de nossos professores, o quanto somos/ou são mágicos por termos/ter suportado dores maiores que a que ele está enfrentando atualmente: noites sem dormir, horas sem comer, dias longe da família, abusos, ameaças, medos sofridos calados. Porque não falamos o quanto isso também custou à nossa saúde mental? O quanto isso custou à nossa felicidade?
O exercício da Medicina é uma tarefa árdua e desgastante. Uma reconstrução pessoal a respeito do que leva um jovem a escolher tal caminho se faz necessária. Com a graduação e o início da atividade médica subsequente muitas vezes em plantões de pronto-atendimento lotados, ou equipamentos de saúde distantes das condições ideais, cria-se um ambiente propício para a “desumanização” do médico. Lidamos com plantões lotados, falta de recursos, uma população ainda carente de condições de saúde plenas, e com a gravidade e complexidade dos casos atendidos. Também nota-se uma mudança do perfil do médico ao longo das décadas, do tradicional médico de família, que atendia a domicílio e dominava a relação médico-paciente, para o médico do posto de saúde, do hospital e o especialista, que devido à demanda por uma medicina cada vez mais técnica, pode subestimar a importância terapêutica da relação médico-paciente. As consequências dessas mudanças e novos contextos afetam nossa classe em termos de saúde mental e são estudadas e avaliadas de forma extensa na literatura a respeito. Todavia, de tempos em tempos, é necessário um afastamento do tecnicismo envolvido nessa discussão, e uma aproximação da subjetividade do médico, aproximando-se da essência da sua individualidade. Lidamos diariamente com um tipo de sofrimento inerente à nossa prática, carregar o ônus de ser o responsável da dor do outro, o que torna a reflexão a respeito vital, não só para uma boa medicina, como para nossa própria saúde mental
O que estamos tentando dizer é para pensarmos qual a motivação para tudo isso. Havia a necessidade? Se havia, ainda há? Se há, existe alguma forma de amenizar o sofrimento? Existe algum meio de proporcionarmos apoio que não seja de uma forma desesperada como quem estivesse buscando ar ao se afogar no mar revolto? Os tempos são outros. Cuidar de mim é crucial. Cuidar do outro é consequência imediata disso. Se cuidamos de nós, iremos querer que todos façam o mesmo. Se amamos viver (com todos seus obstáculos, dores, sofrimentos, pesares, perdas, etc.), iremos querer que todos sintam o mesmo. Se somos ajudados por alguém em um momento de dificuldade, iremos querer ajudar alguém que também sofre. Em nosso meio, talvez o suicídio seja o resultado da perda de todas essas conexões. Reconecta-las é o desafio dessa geração; e começar por nós mesmos, médicos e demais profissionais de saúde, é inadiável.
Referências:
- OMS Website. Accessed on September 9th. http://apps.who.int/gho/data/view.main.MHSUICIDEASDRv?lang=en
- Kruk ME, Gage AD, Joseph NT, Danaei G, García-Saisó S, et al. Mortality due to low-quality health systems in the universal health coverage área: a systematic analysis of amenable deaths in 137 countries. The Lancet. 2018. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)31668-4.
- Wasserman D. (Ed.) (2016) Suicide: na unnecessary death. 2nd ed. Oxford University Press: Oxford, UK.
- O’Connor RC, Pirkis J. (Ed.) (2016) The international handbook of suicide prevention. 2nd ed. Wiley: New Jersey, US.
- Zalsman G, Hawton K, Wasserman D, van Heeringer K, Arensman E, et al. Suicide prevention strategies revisited: 10-year systematic review. The Lancet Psychiatry. 2016; 3(7):646-659.
- Mann JJ, Apter A, Bertolote J, et al. Suicide prevention strategies: a systematic review. JAMA. 2005; 294: 1064-74.
- Zimerman, A., Caye, A., Zimerman, A., Salum, G. A., Passos, I. C., & Kieling, C. (2018). Revisiting the Werther Effect in the 21st Century: Bullying and Suicidality Among Adolescents Who Watched 13 Reasons Why. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, 57(8), 610–613.e2. doi:10.1016/j.jaac.2018.02.019.